quarta-feira, 15 de abril de 2020

Qualquer dia



Atualmente o adiamento é para qualquer dia
depois de amanhã é muito próximo
um vírus, uma pandemia, a mais adia.

ADIAMENTO
Álvaro de Campos

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
                                Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...

14-4-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.

sábado, 4 de abril de 2020

Cerejeiras em flor e COVID-19


O COVID-19 chegou sem convite e sem cerimónias, instalou-se onde quis e empurrou-nos para casa, carregados de desinfetantes, num confinamento imposto pelos Estados. Uns mais cedo, outros mais tarde, uns em regime ditatorial, outros em regime de suspensão do Estado de Direito, pelo Estado de Emergência decretado ou outras medidas.

Em Wuhan, Província de Hubei, no centro da China havia um mercado que, eventualmente voltará a haver, com condições inimagináveis para sociedades ocidentais desenvolvidas, onde homens e bichos coexistiam num aglomerado de tantos, tão juntos e tão imiscuídos, uns matando os outros, uns comendo os outros, o sangue de uns escorrendo por todos, numa confusão e sujidade indizíveis. Ao que parece era, e eventualmente será, um mercado especializado na comercialização de animais selvagens que há décadas passaram a ser criados com autorização do Estado, por haver tanta pobreza na zona. O negócio prosperou, terá evoluído para espécies em extinção, com a mesma promiscuidade, talvez debaixo de algum pano, barraca montada para cobrir a ilegalidade igualmente ensanguentada.

O resto é história conhecida, mete morcegos, pangolins e humanos, matando-se e comendo-se, espalhando sangue e fluidos e vísceras e urina e fezes por todo o mercado, passando para o homem um corona virus que era específico dos animais. Os Chineses deram por isso, pneumonias estranhas e muitas estavam a afetar quem frequentava o mercado e o contágio parecia sério. Resolveram rapidamente o problema calando e humilhando o médico que o identificou e que pouco tempo depois dele morreu, embora já socialmente reabilitado, por o virus se ter tornado incontrolável e não haver modo de o negar. Espalhou-se primeiro pela China e depois pelo mundo, no que é atualmente uma pandemia que em praticamente todos os países do mundo está a causar o caos e a morte, acabando, ou pelo menos suspendendo por tempo indeterminado, a vida como era conhecida neste novo milénio, neste início de terceira década do século XXI.

Estando a contaminação em Hubei, originada num mercado com condições da Idade Média, controlada pela tecnologia, com drones, investigação clínica, análise massiva de dados, em hospitais construídos em dez dias, em que também trabalham enfermeiros-robots, o confinamento social abranda ligeiramente, já sendo possível às pessoas saírem de casa.

Um contaminado com COVID-19, em vez de um turista, fotografa uma árvore florida com telemóvel, talvez para colocar a imagem nas redes sociais, provavelmente com a esperança de que se torne viral entre os fisicamente confinados pelo virus e digitalmente ligados de todo o mundo.

Em Wuhan, por agora, as cerejeiras florescem e são lindas como sempre foram. Florescem, também, pelo mundo. Podemos vê-las no telefone. Será que se não estivéssemos obrigatoriamente fechados em casa as veríamos doutra forma? A natureza espera sempre por nós. Nós vamos ao mercado, ou ao supermercado, ou ao centro comercial, ou à cidade comercial, ou à zona metropolitana comercial comprar, comprar, comprar e eventualmente comprar também posters de fotos de cerejeiras em flor e cerejas calibradas, enceradas e lindamente embaladas.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Fábula de uma economia


A literatura tem a virtude de evidenciar a essência das coisas, sem sequer a mencionar.
Nas supostas histórias infantis, de que se salientam as fábulas, isso é ainda mais intenso.
Li, agora, “A Montanha da Água Lilás”, de Pepetela e recordei as vezes que li e reli o “Animal Farm”, de George Orwell, sem acreditar o quanto era possível mostrar tudo sem dizer nada. Nessa altura, algures no milénio passado, estava-se em exuberante guerra fria e o comunismo era uma doutrina e uma realidade que dominava metade do mundo. A metade que não era a nossa. Do lado de cá da História, o liberalismo capitalista prometia e as sociedades de consumo ocidentais prosperavam. Chegou a parecer que ia durar sempre e ser suficiente para todos. Apesar de ganhar a guerra fria com o aquecimento que a saída dos choques petrolíferos proporcionou, não se viu proliferar no Ocidente a distribuição de riqueza que o mercado livre criava. Pelo contrário. Embora, em geral, se viva melhor, a concentração da riqueza em pouquíssimos tem sido uma tendência crescente. Todas as pessoas vivem melhor, mas muito poucas vivem mais melhor que todas as outras.
“Animal Farm” é uma fábula política, “A Montanha da Água Lilás” é uma fábula económica. Numa e noutra está lá tudo.
A essência da natureza humana, dê lá por onde der, vai dar sempre no mesmo.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Caridade hoje não é dar, é aceitar receber



A caridade, hoje em dia, não está em dar, está em receber.
Em sociedades de sufocante abundância, desfazer-se do que não se precisa, do que não se usa, é altamente traumático, desde a escolha e o desapego, até conseguir encontrar um destino para o excesso. Quem recebe faz um favor e a gratidão de quem dá, aliada à estereotipada sensação de ser bom, é uma bênção provavelmente não merecida.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

segunda-feira, 13 de março de 2017

Computador com células do cérebro vivas


Atenção que esta novidade é velha. É de março de 2016. Tem, portanto, cerca de um ano. Fazer um computador com células de cérebro vivas é passado, não é ficção científica.

Um drone com olfato de abelha para conseguir cheirar bombas a vários quilómetros de distância.

A biologia era a última fronteira. Vai deixando de ser.

O futuro é só algo que ainda não nos aconteceu. O não significa que não tenha já acontecido a outros.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Já chegou



Havia uma polémica pouco intensa sobre aprender línguas estrangeiras.

A posição clássica, maioritária e obviamente sensata, era a de que aprender línguas, pelo menos a língua franca corrente que é o inglês, era muito importante de um modo geral, indispensável num mundo conectado e imprescindível no mundo (a)nacional da ciência.  
A posição vanguardista, minoritária e obviamente louca era a de que muito rapidamente se tornaria desnecessário aprender língua(s) estrangeira(s), porque a tradução simultânea iria ficar ao alcance imediato das pessoas. De todas, enfim, de quase todas, as pessoas.
Para o desenvolvimento da tradução em massa global contribuiram principalmente a Google, pela iniciativa aliada à dimensão e a colaboração coletiva (crowdsoursing) que a internet torna possível escalar até ao infinito.
A Google pediu-nos, a todos os milhões que pelo mundo inteiro usamos o motor de busca, que o ensinássemos a escrever e depois a falar em várias línguas, potencialmente em todas as línguas. O bebé Google, especialmente dotado, teve a humanidade como professor.
A colaboração coletiva sempre existiu e a internet difundida através de dispositivos móveis, mas também de dispositivos imobilizados, aboliu a distância física, criando a proximidade que é pressuposto dessa colaboração, tornando-a possível a um nível global.

A velocidade a que tudo acontece neste século XXI deve-se, em muito, à disponibilidade do conhecimento que permite que se trabalhe sobre e a par do que outros estão a fazer, progredindo mais e também mais depressa.
A possibilidade de nos entendermos, em qualquer língua, será certamente mais um passo para a aceleração.

A ver se nós, simplesmente humanos, aguentamos a pressão.
Ou, numa perspetiva mais otimista que se justifica olhando para tudo aquilo de que a humanidade tem sido capaz, vamos ver como nós, humanos, aguentamos a pressão. Provavelmente deixando de ser “simplesmente humanos”.